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Porto Alegre, RS, Brazil
Blog dedicado à livre literatura. Poemas, contos, crônicas, músicas, palavras ao vento... e o que te fizeres viajar pela imaginação. O LIVRETU é livre, e surgiu da idéia de alguns amigos dividirem suas produções, delírios, sonhos, alegrias e letras. Envia tuas composições também! Faça parte dessa grande esfera literária. É livre. E como fala nosso grande Drummond: Se procurar bem você acaba encontrando. Não a explicação (duvidosa) da vida, Mas a poesia (inexplicável) da vida. Envia para livre_tu@hotmail.com tuas idéias. O blog já fez 2 anos e comemora com uma mini-edição impressa e uma confraternização de artes, o ORGIARTE, ambos indo para a sétima edição.

sábado, 9 de janeiro de 2010

(..) Ah detritos, mas tudo isso é inútil e bem sei de como tenho tentado me alimentar dessa casca suja que chamamos com fome e pena de pequenas-esperanças, enquanto definho feito um animal alimentado apenas com água, uma água rala e pouca (...) lentamente afio as pedras e as facas do fundo das minhas pupilas, para que a noite não me encontre outra vez insone, recompondo sozinho um por um dos teus traços, para que quando esses teus olhos escuros e parados como as águas do mar de inverno na praia onde talvez caminhe ainda, que seu fio esteja tão aguçado que possa rasgar-te até o fundo, para que te arrastes nesse chão, sangrando e gemendo, a implorar de mim aquele mesmo gesto que nunca fizeste, e nem mesmo sei exatamente qual seria, mas que nos arrancasse brusco e definitivo dessa mentira gentil onde não sei se deliberados ou casuais afundamos pouco a pouco,bêbados como moscas sobre açúcar, melados de nossa própria cínica doçura acovardada, contaminados por nossa falsa pureza, encharcados de palavras e literatura (...) enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento e nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira,tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros, à medida que o dia avança estruturando milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente, os vermes roendo os porões que insistimos em manter indevassáveis, até que o não-feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que recusamos tocar por nojo ou covardia ou paixão tão endemoninhada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo.


CAIO FERNANDO ABREU, À BEIRA DO MAR ABERTO

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